Manhã
Tenho tempo
Jardim
Uma semente, uma promessa
Guerra e Paz
Mar
Eu sou pelas árvores
O pássaro da alma
No fundo, bem lá no fundo do corpo, mora a alma.
Ainda não houve quem a visse,
Mas todos sabem que ela existe.
E não só sabem que existe,
Como também sabem o que tem dentro.
Dentro da alma,
lá bem no centro,
Pousado numa pata
Está um pássaro.
E o nome do pássaro é pássaro da alma.
Dentro do corpo, no fundo, bem lá no fundo, mora a alma.
Ainda não houve quem a visse,
Mas todos sabem que ela existe
E ainda nunca,
nunca veio ao mundo alguém
Que não tivesse alma.
Porque a alma entra dentro de nós no momento em que nascemos
E não nos larga
— Nem uma só vez —
Até ao fim da nossa vida.
Como o ar que o homem respira
Desde a hora em que nasce
Até à hora em que morre.
E o mais importante — é escutar logo o pássaro.
Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós, e nós não o ouvirmos.
É pena. Ele quer falar-nos de nós próprios.
Há quem o ouça muitas vezes,
Há quem o ouça raras vezes,
E há quem o ouça
Uma única vez na vida.
Por isso vale a pena
Talvez tarde pela noite, quando o silêncio nos rodeia,
Escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós,
no fundo, lá bem no fundo do corpo.
Michal Snunit
O Pássaro da Alma
Lisboa, Ed. Vega, 2000
(Excertos)
Folha
Arranja tempo
Arranja tempo para a amizade – é o caminho da felicidade.
Arranja tempo para o sonho – é prenderes-te a uma boa amarra.
Arranja tempo para amares e seres amado – é o privilégio dos deuses.
Arranja tempo para olhares à tua volta – o dia é curto demais para o egoísmo.
Arranja tempo para o riso – é a música da alma.
Helen Exley
in Sabedoria do Milénio
Lisboa, 2004
Houvesse um sinal
E unicamente ao movimento de crescer
nos guiasse
Termos das árvores
A incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros.
Daniel Faria (1971-1999)
Eros e Psique
A rosa doente
Natal Up-To-Date
Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década
Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público
Nas palhas do curral ocultam-se microfones
O lajedo em redor é de pedras da lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas
Eis que surge do céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido
Assim a noite passa e passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco
David Mourão-Ferreira
Cancioneiro de Natal, 1969
A sombra do quadrante
O planeta inteiro neste sangue
Quantos rios eu tenho no meu sangue
– Tigre – Eufrates, Nilo, Oxo, Ganges, Tejo…
quantas cidades célebres beberam desta água?
Quantas montanhas, desertos e vulcões
são e passaram?
Quantas civilizações?
– Ásia Menor, Mediterrâneo, Índia
México, Peru, China
Arábia, Nigéria, Etiópia…
Nas margens paralelas destas veias
que mais não são que as margens desses rios
quantos anseios por elas já ousaram?
O Planeta inteiro neste sangue
onde circulam todas as idades
onde coabitam esperanças e desejos.
Eugénia Neto
O Soar dos Quissanges
Lisboa, Ed. Presença, 2003
Nihil Novum
Nihil Novum *
Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.
No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado…
Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,
Triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida – o mesmo estranho mal,
E o coração – a mesma chaga aberta!
Florbela Espanca Sonetos
* Nada Novo
Cidade – Sophia de Mello Breyner
A Paz – Sidónio Muralha
Brinquedo – Miguel Torga
Então eu seria uma criança feliz – Anónimo
Então eu seria uma criança feliz
Se à segunda-feira se pudesse correr livremente pelos prados
e as flores desabrochassem numa explosão de cor…
Se à terça-feira se contemplasse o céu
no seu mistério de um azul sem fim…
Se à quarta-feira se retirassem as máscaras
e a verdade brotasse…
Se à quinta-feira a alegria entrasse nos corações…
Se à sexta-feira todos se dessem as mãos…
Se ao sábado os pais contassem aos filhos histórias de encantar…
Se ao domingo a beleza do silêncio se renovasse em cada ser…
Então eu seria uma criança feliz,
e a minha canção voaria por sobre as casas,
dançaria entre os ramos das árvores,
e à hora do crepúsculo repousaria sobre os mares do mundo,
tornada canção de embalar,
a encher de paz e de ternura os sonhos das crianças.
Anónimo
Preservação – Miguel Torga
Parque infantil – Miguel Torga
Joga a bola, menino!
Dá pontapés certeiros
Na empanturrada imagem
Deste mundo.
Traça no firmamento
Órbitas arbitrárias
Onde os astros fingidos
Percam a majestade.
Brinca, na eterna idade
Que eu já tive
E perdi,
Quando, por imprudência,
Saltei o risco branco da inocência.
Miguel Torga
Diário VII, 1956
Mokiti Okada
Apreciar com amor
A flor da primavera
E o bordo do outono
É corresponder à infinita bênção
Que nos é concedida por Deus.
Deleitando-nos com a arte,
Somos purificados em corpo e alma:
Isso sim, é bênção divina.
Fazendo das flores, dos pássaros,
Do vento e da lua
Meus amigos,
Desejo viver alegremente
Mesmo neste mundo cheio de sofrimentos.
Mokiti Okada
Miniatura – Miguel Torga
Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.
É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente.
Miguel Torga
Diário VIII , 1957